Artigo: Leitura liberta

A cultura hebraica foi profundamente moldada por princípios religiosos, e a disciplina do estudo — especialmente o estudo de temas sagrados — ocupava um lugar central na vida social, espiritual e até mesmo médica desse povo. Diversos estudos apontam para uma conexão marcante entre religião, estrutura familiar, valores sociais, práticas de higiene e cuidados com a saúde dentro dessa tradição milenar.

Estudar era um valor sagrado — motivo de orgulho, um dever espiritual que transcendia o mero aprendizado intelectual. O conhecimento, sobretudo o bíblico, era visto como fonte de sabedoria, proteção moral e fortalecimento da comunidade. O Talmude, uma das obras fundamentais da tradição rabínica, declara: “O estudo da Torá é equivalente a todos os demais mandamentos juntos.” Desde a infância, os meninos hebreus aprendiam a ler, memorizar e interpretar os textos sagrados. Ou seja, a leitura e a interpretação da palavra eram vistas como caminhos de libertação. Com o tempo, o Talmude e outras obras rabínicas passaram a compor o currículo tradicional de estudos, sempre com o propósito de integrar fé e razão, teoria e prática.

Na tradição hebraica, o estudo não é apenas um exercício intelectual: é um ato de adoração. Uma forma de aproximar-se de Deus, de conhecê-Lo e de cumprir Sua vontade. O saber é compreendido como instrumento de santidade — capaz de proteger o indivíduo e a coletividade contra desvios morais e espirituais. Assim, os líderes religiosos não eram escolhidos por status ou riqueza, mas por sua erudição, dedicação e profundidade no entendimento das Escrituras.

Essa conexão entre fé, conhecimento e saúde também se expressava em preceitos práticos. Muitos mandamentos religiosos tinham implicações sanitárias e médicas. O conceito de pureza ritual envolvia práticas como o banho de purificação após certos eventos, promovendo não apenas a pureza espiritual, mas também a higiene pessoal e doméstica. A proibição do consumo de alimentos potencialmente contaminados — como carnes de animais impuros ou deteriorados — trazia benefícios evidentes à saúde pública. O exemplo mais notório é a interdição da carne de porco, cujos riscos sanitários eram reconhecidos, mesmo sem o respaldo da ciência moderna.

Entre outras práticas, destaca-se a lavagem das mãos antes das refeições ou após o contato com agentes impuros — um hábito milenar com reconhecido valor preventivo. A medicina era respeitada e valorizada, desde que se mantivesse dentro dos limites dos mandamentos. Os médicos eram vistos como servidores do bem, e a própria cura, como um dever sagrado. A tradição rabínica afirma: “Aquele que salva uma vida é como se salvasse o mundo inteiro.”

Textos como o livro de Levítico oferecem prescrições detalhadas sobre o isolamento de pessoas com doenças contagiosas — como a lepra —, além de orientações sobre alimentação e conduta que hoje reconhecemos como práticas de medicina preventiva. Cuidar do corpo e da saúde era, portanto, uma obrigação religiosa. Em Deuteronômio 4:15 está escrito: “Guardai, pois, cuidadosamente as vossas almas.” Os sábios interpretaram esse versículo como um mandamento que inclui o zelo pela saúde física e mental, além da espiritual.

Onde quer que o povo hebreu tenha chegado, levou consigo essa semente cultural: o amor ao conhecimento, a disciplina no estudo e o cuidado com o corpo e com a alma. Esse legado enraizou-se em comunidades distantes e floresceu ao longo das gerações. Um exemplo significativo está no povo do Seridó, no sertão nordestino do Brasil — região colonizada por ibéricos de origem hebraica, cujos descendentes preservaram, ainda que de forma discreta e adaptada, muitos traços dessa rica herança cultural: na religiosidade, na estrutura familiar, na ética do trabalho, no estudo e nos hábitos de higiene.

No sertão, é comum ouvir os mais velhos — verdadeiros guardiões da sabedoria popular — dizerem com convicção: “Quer ser alguém na vida? Estude.”

Janduhi Medeiros

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