Artigo: Linha luminosa

O bordado está para o Seridó como o fio de luz está para o alvorecer.
Na vastidão árida do sertão seridoense, o bordado floresce como uma arte ancestral, tecida com paciência, fé e identidade. Em cada comunidade do Seridó, é quase certo encontrar pelo menos uma bordadeira — e, muitas vezes, várias — que, com mãos habilidosas, dá vida a estolas, panos de mesa, vestes, enxovais e sonhos. São peças adornadas com símbolos, detalhes e esmero, refletindo a alma do povo e sua história.

Entre essas comunidades, destaca-se Timbaúba dos Batistas, hoje reconhecida como um dos principais polos do bordado na região. A história nos conduz ao final dos anos 1960, quando uma jovem da comunidade, Iracema Soares, teve a ousadia de buscar o saber além de sua cidade natal. Foi até Caicó, então conhecida por seu intercâmbio comercial com Recife, de onde vinham os melhores fios — linho e linhas coloridas, que se tornariam a artéria da arte seridoense.

Naquela época, apenas as mulheres caicoenses dominavam a técnica do bordado colorido, mas Iracema, movida por determinação e talento, aprendeu com elas. Voltou para Timbaúba dos Batistas trazendo não apenas conhecimento, mas também cinco máquinas de bordar, agulhas e linhas que conseguiu reunir. Com elas, transformou sua casa numa verdadeira escola de arte. Ali ensinou outras mulheres, que, aos poucos, se apaixonaram pelo ofício. A partir dessa semente, Timbaúba floresceu como referência no bordado artesanal do Seridó, com destaque hoje em todo país.

Pelo impacto social e cultural de sua iniciativa, Iracema Soares foi homenageada como patrona da Casa das Bordadeiras Iracema Soares — símbolo de resistência e tradição. Sua obra ecoa até hoje nas mãos de tantas outras mulheres que bordam a vida com fios de esperança, renda, beleza e história.

No Seridó, o bordado não é apenas uma atividade econômica ou decorativa: é uma devoção. E essa devoção remonta a raízes profundas e simbólicas, ligadas à espiritualidade e à herança cultural dos povos que colonizaram a região.

Muitos dos refugiados que chegaram ao Seridó — especialmente os cristãos-novos, descendentes de hebreus convertidos à força em Portugal e na Espanha — trouxeram consigo tradições que se enraizaram na terra seca e fértil de símbolos. Entre essas tradições, o bordado ocupava lugar de destaque, como forma de expressão artística, espiritual e identitária.

Desde os tempos bíblicos, o bordado é mencionado como arte sagrada. No Antigo Testamento, por exemplo, o livro do Êxodo (26:1 e 28:39) descreve como deveriam ser feitas as cortinas do Tabernáculo e as vestes sacerdotais: “Farás o tabernáculo de dez cortinas de linho fino retorcido, azul, púrpura e carmesim, com querubins bordados nelas, obra de artista…”

Esses bordados, feitos com fios coloridos e até mesmo com ouro, tinham funções ritualísticas e simbólicas, evocando a santidade e a beleza da adoração a Deus.

Na Europa, entre as comunidades sefarditas e os cristãos-novos, o bordado se manteve vivo: mulheres bordavam fronhas, toalhas, panos de pão e roupas com letras hebraicas, bênçãos e símbolos como a estrela de Davi, romãs, leões e a Menorá. Esses objetos eram passados de geração em geração, como heranças espirituais e familiares, carregando consigo não só beleza, mas também resistência cultural e fé silenciosa.

Na África e no Oriente Médio, os estilos variavam conforme a região, com influências árabes, berberes e otomanas — mas sempre marcados por ícones hebraicos que falavam de identidade e pertencimento.

Ainda me lembro da minha mãe bordando toalhas de banho, para dar encantamento à disciplina familiar da higiene.

Hoje, o bordado continua vivo na arte hebraica contemporânea, presente em objetos litúrgicos, vestes cerimoniais e elementos do design moderno. No Seridó, essa tradição se entrelaça com a vida cotidiana e ganha novas cores nas mãos das bordadeiras, que mantêm viva a chama de um passado que se recusa a desaparecer.

Assim, o bordado seridoense não é apenas uma arte: é um elo entre gerações, um fio que costura histórias, fé e pertencimento. E como uma janela que se abre e anuncia um novo dia, ele continua a iluminar o orgulho e a alma do povo do Seridó.

Janduhi Medeiros

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