Meu pai foi um grande discípulo da conversa.
E não era qualquer conversa: seus temas preferidos giravam em torno das histórias bíblicas, da poesia, do plantio, da colheita, das boas músicas — sobretudo as de Luiz Gonzaga — e da disciplina familiar, da qual era um verdadeiro protetor. Respeitar os mais velhos e estudar era uma obrigação sagrada dos filhos, “sem choro e sem vela”. À hora do almoço e do jantar, todos deviam estar à mesa, sob pena de castigos que educavam mais pelo exemplo do que pela severidade. Para ele, a mesa era altar, era rito; o estudo, uma estrela no horizonte.
Nas tardes que adentravam as noites, especialmente às sextas-feiras, meu pai era convidado por amigos e parentes para prosear nos alpendres — verdadeiros templos da palavra falada. E puxava conversa sobre poesia, história, a terra, os parentes que foram morar distantes, mas deixaram e levaram saudade, religião e chuva. Era um primoroso contador de causos — desses que sabem prender a atenção com a cadência da fala e o brilho no olhar. Seus relatos exaltavam os heróis dos folhetos sertanejos, poetas e cantadores que celebravam a resistência do homem da roça diante das estiagens, os dramas familiares causados pelo êxodo rural, e trazia, por vezes, um humor leve, que arrancava risos sinceros para aliviar a dor.
Nascido num pequeno povoado no coração do Seridó, no início da segunda década do século XX, ele não teve acesso à educação formal — não havia escola nos arredores de Ouro Branco naquela época. Quando o Grupo Escolar chegou, já era adulto e precisava trabalhar. Mas, como muitos de sua geração, formou-se na escola da vida e da família, moldado pela oralidade — essa mestra silenciosa que chegou às salas do sertão pelos mandamentos transmitidos pelos colonos.
Historicamente, sabe-se que o Seridó foi colonizado por refugiados ibéricos de origem hebraica. A marca dessa ancestralidade é visível na cultura singular do povo e, sobretudo, na forma como o saber é transmitido: pela palavra falada, pelo conto, pela poesia, pela música, pela disciplina, pelas rezas, pelo exemplo.
A tradição oral sempre foi, entre os hebreus, guardiã da fé e da memória coletiva. Mesmo antes da escrita, os ensinamentos religiosos, morais e históricos já eram transmitidos de geração em geração pelo povo de Abraão, por meio de cânticos, recitações e repetições. Os profetas eram transmissores orais da palavra divina. Muitos discursos proféticos foram primeiro pronunciados — e só depois, escritos.
Assim nasceram a Torá e os demais livros bíblicos dessa milenar cultura. Mais tarde, essa tradição foi sistematizada no Talmude, que recolheu séculos de interpretações e discussões sobre os mandamentos da disciplina. Durante o exílio — seja no Egito, na Babilônia ou em outros momentos de dispersão —, a oralidade foi a chave para manter viva a identidade do povo hebreu. Ela democratizava o conhecimento, tornando-o acessível a todos — mesmo aos que não sabiam ler — na busca pela libertação.
Essa mesma tradição ecoou, de forma quase secreta, no sertão nordestino, por razões de fé. Era nos núcleos familiares, nas rodas de conversa, nas feiras, nos alpendres, nas calçadas e nos terreiros que o conhecimento circulava e educava. Foi nesse ambiente que meu pai cresceu e se instruiu. E foi nessa escola que se fez sábio e prosador.
Um sábio, como muitos no Seridó, sem diplomas acadêmicos, mas com vasto saber humano. Um prosador nato, herdeiro da memória ancestral de seu povo. E, acima de tudo, um homem que compreendia que a palavra tem poder — de ensinar, de emocionar, de libertar e de eternizar.
Janduhi Medeiros