Artigo: Símbolo de Força

O sertanejo — seja da roça, seja vaqueiro — tem no chapéu de couro mais que um acessório: tem um traço de identidade. De aba curta, bem ajustado à cabeça, o chapéu é uma espécie de extensão do corpo. Em quase todas as cidades do sertão há um artesão especializado na sua confecção, e alguns conquistaram prestígio além das fronteiras regionais, reconhecidos pela excelência de sua arte. O chapéu de couro é, sem dúvida, um dos elementos mais marcantes da estética cultural nordestina — símbolo da resistência, da adaptação ao clima, e da força do povo do semiárido.

Mais recentemente, estudos antropológicos e históricos começaram a apontar para uma vertente menos conhecida e surpreendente: a possível influência da cultura judaica — mais precisamente, dos cristãos-novos e de seus descendentes — na origem simbólica e no uso cotidiano do chapéu de couro. Embora não haja evidência direta de que o chapéu seja uma criação judaica, há fortes indícios de influência cultural oriunda dos judeus sefarditas que, perseguidos pela Inquisição, refugiaram-se no interior do Brasil colonial, especialmente no sertão nordestino.

A análise dessa influência requer uma leitura simbólica, histórica e antropológica. Trata-se de investigar não apenas a forma do objeto, mas seu uso social, sua função ritual e o imaginário que o cerca.

Durante a colonização portuguesa, inúmeros judeus sefarditas, perseguidos pela Inquisição, migraram para o Brasil e, para não perecer, esconderam sua fé. Muitos encontraram no sertão um refúgio possível — longe da vigilância da Igreja, em terras esquecidas pelo poder colonial. Lá, suas práticas religiosas e culturais foram sendo ressignificadas, adaptadas e fundidas às tradições locais, muitas vezes de forma silenciosa. O chapéu de couro, nesse contexto, pode ser visto como uma dessas transmutações simbólicas: um objeto cotidiano que, sem saber, carrega a memória de um passado espiritual escondido.

Na tradição judaica, por exemplo, o uso do quipá (kippah) simboliza reverência, humildade e a lembrança constante da presença divina. Embora o chapéu de couro do sertanejo tenha uma função essencialmente prática — proteger do sol inclemente, dos espinhos do mato e da chuva que chega de surpresa — existe também uma dimensão simbólica arraigada no costume de “não sair de casa sem ele”. É comum que o sertanejo só o retire diante de situações solenes ou figuras de autoridade: dentro da igreja, em funerais, ou ao cumprimentar alguém mais velho. Essa atitude ressoa, mesmo que de forma inconsciente, com o sentido espiritual do quipá: cobrir a cabeça como sinal de respeito e consciência do sagrado.

A forma do chapéu também contribui para essa leitura. Muitos modelos tradicionais possuem um topo redondo ou levemente côncavo, que guarda semelhança com o formato do quipá. A geometria circular, por sua vez, carrega um valor simbólico universal, mas que na tradição judaica é particularmente significativa, remetendo à eternidade, à unidade e ao ciclo da vida — conceitos fundamentais da espiritualidade hebraica.

Outro ponto de aproximação está no processo de fabricação. Na tradição hebraica, o trabalho manual e artesanal é valorizado não apenas como ofício, mas como forma de conexão espiritual e transmissão de saber. O chapéu de couro é fruto de um processo minucioso e ancestral, passado de geração em geração — um reflexo possível do princípio judaico de “l’dor vador” (de geração em geração), que rege a continuidade das práticas culturais e religiosas.

Além disso, muitos chapéus sertanejos apresentam bordados, marcas ou inscrições personalizadas. Embora não relacionados diretamente ao judaísmo, esses sinais podem ser comparados a elementos visuais da religiosidade judaica, como os tefilins ou os tzitzit (franjas do talit), que funcionam como marcas identitárias. No sertão, essas inscrições no couro servem como insígnias familiares, sinais de pertencimento, símbolos silenciosos de identidade. Alguns estudiosos veem nisso um eco das práticas criptojudaicas, comuns entre cristãos-novos forçados a ocultar sua fé, mas que mantinham discretamente alguns gestos, objetos e códigos de pertencimento.

A função protetora do chapéu também pode ser lida em chave simbólica. Ele protege contra as intempéries da natureza e, de certa forma, contra as adversidades da vida. No judaísmo, a proteção espiritual é frequentemente representada por objetos físicos: o quipá, o mezuzá nas portas, o talit nos ombros. O chapéu de couro, nesse sentido, pode ser interpretado como uma espécie de escudo simbólico, um abrigo identitário diante de um mundo hostil.

Mas talvez o maior símbolo judaico presente no chapéu de couro esteja justamente em sua função como marca de resistência cultural. Assim como o povo hebreu enfrentou exílios, perseguições e tentativas sistemáticas de apagamento, o povo sertanejo resiste à seca, ao abandono e ao esquecimento. O chapéu de couro, moldado na dureza da terra e no rigor do sol, é uma coroa de sobrevivência, uma armadura simbólica que remete à jornada dos sefarditas que deixaram suas marcas invisíveis no Nordeste brasileiro.

O cantor e pesquisador Santanna, O Cantador, herdeiro artístico de Luiz Gonzaga, afirma que o chapéu de couro é o símbolo mais marcante da influência judaica na cultura do sertão, pois não há, em nenhum outro lugar do mundo, um objeto com tanta força estética e representatividade. Para ele, trata-se de um artefato único — ao mesmo tempo funcional, estético e espiritual — que revela, ainda que em silêncio, a presença dos que vieram de longe e encontraram abrigo na terra seca.

Assim, a influência judaica no chapéu de couro não reside apenas em uma origem funcional ou técnica, mas principalmente no valor simbólico que ele adquiriu ao longo do tempo: sinal de pertencimento, de memória enraizada, de fé disfarçada, de herança cultural resistente. Ele é, por excelência, um lugar onde o sagrado e o cotidiano se encontram, onde o oculto se revela nas práticas mais simples — como colocar um chapéu na cabeça antes de sair para enfrentar o mundo.

Janduhi Medeiros

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