Artigo: Terra Remanescente

Nos últimos anos, o sertão tem recebido novos visitantes. Já não se trata apenas dos antigos viajantes em busca de milagres, dos mascates errantes ou dos retirantes fugindo da seca implacável. Agora, quem chega são estudiosos — antropólogos, historiadores, pesquisadores de diversas áreas — homens e mulheres movidos pela inquietação intelectual, pela escuta atenta e pelo desejo de compreender o que pulsa sob a superfície da vida sertaneja.

Esses novos olhares vêm desvelando uma dimensão até então oculta da história nordestina: o criptojudaísmo sertanejo — uma fé subterrânea, discreta, que sobreviveu disfarçada por séculos sob os véus da história oficial. Entre santos devotados e altares domésticos, persistiram rituais, símbolos e práticas de origem hebraica, transmitidos em segredo de geração em geração — muitas vezes sem plena consciência de sua ancestralidade.

Aquilo que, por séculos, permaneceu calado, hoje começa a se converter em narrativa: a memória oculta ganha voz, rosto, reconhecimento. Multiplicam-se as pesquisas, os depoimentos, os registros audiovisuais e os encontros acadêmicos. Uma nova história emerge — feita não apenas de documentos, mas também de gestos, receitas, nomes, objetos, orações sussurradas ao entardecer.

Entre os nomes que se destacam nesse movimento recente está o da antropóloga Ana Paula Cavalcante, que há anos investiga a presença hebraica no sertão, com especial atenção à região do Seridó, no Rio Grande do Norte. Já residiu por meses em Caicó, estabelecendo vínculos afetivos e acadêmicos — degustando filhós com mel e carne sem sangue, convivendo com a comunidade local e recolhendo indícios de uma herança hebraica muitas vezes invisível até mesmo aos próprios herdeiros.

Mais do que acolher pesquisadores de fora, o próprio povo do sertão começa a revisitar sua história com outros olhos. Moradores e descendentes de antigas famílias buscam compreender suas origens à luz do criptojudaísmo, relacionando aspectos da gastronomia, da organização familiar, dos costumes e práticas sociais com ensinamentos contidos no Talmude e em outras tradições judaicas, além da reconstrução de suas linhagens.

Cada vez mais, estudiosos vêm apontando fortes indícios de costumes judaicos diluídos no cotidiano popular nordestino — como os rituais fúnebres de lavagem de corpos, enterros simples em mortalhas, o uso de pedras sobre os túmulos, cortejos silenciosos, o derramar de água após a morte, além de práticas domésticas como evitar varrer o lixo em direção à porta — o que poderia remeter à proteção da mezuzá. Muitos dos sítios e plataformas que abordam essa temática destacam o costume de colocar pedrinhas sobre os túmulos como sinal de reverência, bem como o hábito de lançar um punhado de terra durante os funerais — tradições que evocariam raízes sefarditas.

Estudos recentes discutem também como símbolos como a Estrela de Davi, o chapéu de couro (com semelhança ao quipá) e as alpargatas com traços mouriscos se integraram ao vestuário sertanejo — especialmente aos trajes dos vaqueiros — trazendo à tona uma simbologia judaica camuflada, que se mesclou à cultura católica local como forma de resistência e sobrevivência.

O etnógrafo Marcos Silva, em colaboração com Vitória Santos Santana, explora o que denomina criptocabalismo sertanejo — uma síntese sincrética entre o cristianismo popular do sertão e a mística judaica sefardita/cabalística. Juntos, identificam reflexos dessa influência na literatura popular, especialmente no cordel, e em obras de autores como Ariano Suassuna, sugerindo a presença simbólica da Shekinah — a manifestação da presença divina no misticismo judaico — em figuras femininas tradicionais do imaginário sertanejo.

Antes deles, já haviam visitado o Seridó nomes como Anita Novinsky, Nathan Wachtel e outros estudiosos que lançaram luz sobre esse campo de pesquisa ainda em consolidação.

O que antes era um tema marginal, hoje começa a permear o cotidiano: livros, documentários, seminários e grupos de estudo sobre o judaísmo oculto no sertão ganham espaço — não apenas nos meios acadêmicos, mas também nas rodas de conversa, nas escolas, nas comunidades religiosas e nos lares sertanejos.

Esse movimento é mais do que um resgate: é uma reescrita identitária, revelando que o sertão, longe de ser um espaço isolado ou homogêneo, é uma encruzilhada viva de culturas, fés e memórias. E, no coração dessa travessia, o silêncio dos antigos cristãos-novos encontra, finalmente, a possibilidade de ser escutado — e de pertencer.

Janduhi Medeiros

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