“Cala-boca” da justiça sufoca a mídia independente

Por: Lia Ribeiro Dias

A censura à imprensa e à liberdade de expressão não é nenhuma novidade na história do Brasil. Vem desde os tempos do Império, quando José Bonifácio, presidente da junta governativa, começou a perseguir jornalistas e jornais. Agravou-se nos períodos ditatoriais, como é próprio dos governos autoritários, ganhou alívio com a redemocratização do país e, desde o início dos anos 2000, adquiriu uma nova roupagem: o assédio judicial.

Por meio de ações judiciais na área cível, muitas apresentadas em até uma centena de foros diferentes por todo o país, inviabilizando a defesa, os reclamantes pedem vultosas indenizações por danos morais. Aparentemente mal informados sobre o princípio constitucional que garante a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, juízes de primeira instância têm acatado tais ações sem hesitar — e suas decisões são às vezes confirmadas por desembargadores.

Se os grandes veículos empresariais de comunicação têm musculatura financeira para enfrentar a enxurrada de processos, bancar advogados e viagens e eventualmente pagar indenizações, a mídia independente pode ser calada pelo ativismo judicial. Entre a decisão de primeira instância, que censura reportagens e bloqueia contas bancárias, e a possível vitória em segunda instância, um jornalista independente pode quebrar. O caso mais recente de cerceamento à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa foi a condenação do repórter investigativo Amaury Júnior, autor do livro A privataria tucana, publicado em 2011. O jornalista foi condenado, nesta terça-feira, 22 de dezembro, a sete a anos de prisão por violar o sigilo fiscal de Verônica Serra, filha do ex-governador paulista José Serra. Quando o livro foi lançado, José Serra acabara de perder as eleições presidenciais de 2010 para Dilma Rousseff.

Mas o caso atual mais emblemático é o do jornalista Luís Nassif, editor do jornal eletrônico GGN, 50 anos de profissão e muitos prêmios pela sua atuação profissional. Em uma denúncia-desabafo, Nassif relatou que o cerco que lhe vem sendo imposto por cinco ações judiciais em andamento, das 20 de é vítima, acabará por expulsá-lo do exercício do jornalismo: aplicaram-lhe pesadas multas e bloquearam sua conta pessoal e a de sua empresa.

Não é o primeiro nem o único caso de estrangulamento financeiro da mídia independente via ações judiciais. O também premiado jornalista Lúcio Flávio Pinto, um dos maiores especialistas em Amazônia do país, teve que encerrar, em dezembro de 2018, a publicação de seu Jornal Pessoal, um tabloide quinzenal editado desde 1987, financiado apenas por seus leitores e pelo próprio jornalista e seu irmão. Motivo: a falta de recursos, decorrente em parte das 18 ações judiciais que Lúcio Flávio enfrentou, ao longo dos anos, por denunciar grileiros, desmatadores, garimpeiros e a conivência das autoridades.

Morreu o Jornal Pessoal, mas Lúcio Flávio continuou sua atividade jornalística por meio de seu blog – Jornal do Lúcio Flávio, uma Agenda Amazônica. No meio do ano passado, o veterano jornalista anunciou o encerramento de suas atividades profissionais: diagnosticado com mal de Parkinson, não pode mais exercer a profissão.

Assédio Judicial

As ações judiciais em cascata iniciadas no final de dezembro de 2007 contra a jornalista Elvira Lobato, então repórter especial da Folha de S. Paulo, levaram a advogada Taís Gasparian, do InternetLab, a cunhar a expressão “assédio judicial”, hoje adotada por todos os advogados envolvidos com a defesa da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão. Naquele mês, Lobato publicara uma reportagem sobre os negócios da Igreja Universal, do bispo Edir Macedo.

Foram 111 ações movidas por fieis da Igreja Universal, nenhum deles citado na reportagem. As ações deram entrada em localidades remotas de Norte a Sul do país, todas distantes das capitais, todas com argumentação semelhante, em que os que se sentiram ofendidos pela reportagem exigiam reparação financeira por danos morais. Gasparian, advogada da Folha de S. Paulo e responsável pela defesa de Lobato, não tem dúvida de que foi uma ação orquestrada, que custou caro à empresa e causou enorme sofrimento à jornalista, acusada por dizer a verdade.

A própria repórter, em programa recente da TV Cultura sobre assédio judicial, disse que, embora os fieis da Universal tenham perdido todas as ações, ela considera que o processo contra ela foi vitorioso, pois viu-se obrigada a abandonar a cobertura sistemática que fazia da expansão da igreja de Edir Macedo e de seus meios de comunicação. “Tinha perdido a isenção, pois era parte do processo”, afirmou.

O jornalista Juca Kfouri, um dos nomes mais respeitados da crônica esportiva brasileira, também teve toda a sua defesa coberta pelos veículos onde trabalhava nas mais de cem ações impetradas contra ele. “Sempre incluí nos meus contratos de trabalho uma cláusula de garantia de assistência jurídica pela empresa jornalística”, diz ele. As ações foram impetradas entre 1992 e 2012 por dirigentes da CBF, então comandada por Ricardo Teixeira, processado em vários países por desmandos e corrupção à frente da entidade. A maioria das ações era na esfera cível, onde os pretensos ofendidos pediam indenização por danos morais (calúnia e difamação). A maior parte foi encerrada, com vitória do jornalista; algumas ainda estão em fase de recurso, inclusive no STF.

Além dos prejuízos financeiros, há o desgaste emocional. As campanhas de assassinato de reputação pelas redes sociais estão cada vez mais agressivas e perigosas no ambiente de caça às bruxas e obscurantismo que se instalou no país a partir de 2019. A jornalista Patrícia Campos Mello, também da Folha, sofreu todo tipo de insulto e ameaça, numa campanha massiva contra si pelas redes sociais, por uma série de reportagens sobre a verdadeira indústria da mentira montada para apoiar o então candidato Jair Bolsonaro (ela publicou recentemente um livro a respeito).

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