Parelhas: “Um caso de responsabilidade civil de um município”

Por Rogério Tadeu Romano*

Observo texto de editorial da Folha, publicado em 1.11.24:

“De 48 pacientes submetidos à cirurgia de catarata, no final de setembro deste ano, por meio de mutirão numa maternidade em Parelhas (RN), ao menos 15 apresentaram quadro infeccioso e 8 tiveram de remover o globo ocular.

Trata-se de fenômeno trágico silencioso, como mostra levantamento da Folha. Nos últimos 15 anos, ao menos 276 pessoas no país perderam a visão, parcial ou totalmente (incluindo retiradas do globo ocular), em mutirões.”

É caso típico de apuração de responsabilidade civil daquela administração municipal.

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, até há pouco tempo atrás, aplicava de forma irrestrita a responsabilidade objetiva, mesmo em decorrência de atos omissivos estatais (como se vê do exemplo do RE 109.615-2-RJ e RE 170.014-9/SP). Por sua vez, a Segunda Turma se inclinava pela responsabilidade subjetiva nesses casos, como se lê do RE 179.147-1/SP e Ag no RE 602.223.

Necessário trazer alguns entendimentos com relação a responsabilidade civil do Estado.

Pedro Lessa sintetiza os três sistemas de responsabilidade em direito público: teoria do risco integral, ou por causa do serviço público; teoria da culpa administrativa; teoria do acidente administrativo ou da irregularidade do funcionamento do serviço público.

Disse ele que, desde que um particular sofre um prejuízo em consequência do funcionamento (irregular ou regular, pouco importa) de um serviço público organizado no interesse de todos, a indenização é devida como corolário do princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais; segundo a teoria da culpa administrativa, só há direito à indenização, quando se prova imprudência, negligência ou culpa de qualquer espécie dos órgãos e propostos da União; a terceira teoria tenta a conciliação das anteriores: assim pressupõe o princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais, mas não vai a ponto de mandar que se indenizem todos os prejuízos resultantes do funcionamento, regular ou irregular, dos serviços públicos; sente-se neste terceira teoria um vestígio do conceito de culpa, mas a culpa, aqui, é impessoal, objetiva do serviço público como expôs no conhecido Do Poder Judiciário, pág. 165.

Na teoria do risco integral, o prejuízo sofrido pelo particular é consequência do funcionamento, seja regular ou irregular, do serviço público.

Mas visando atenuar a amplitude da responsabilidade objetiva constitucional, Hely Lopes Meirelles acena com uma discriminação do conceito de risco, mas que recebe a oposição de autores como Alcino Falcão (Responsabilidade patrimonial das pessoas jurídicas de direito público, RDP 11:45). Para Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo brasileiro, São Paulo, 1978) , a teoria do risco integral faz surgir a obrigação de indenizar os danos, do ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração, não se exigindo qualquer falta do serviço público, nem culpa dos seus agentes; basta a lesão, sem o concurso do lesado; baseia-se esta teoria no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar danos a certos membros da comunidade impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Entendia Hely Lopes Meirelles que a teoria do risco administrativo não se confunde com a teoria do risco integral: “Nesta a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resulte de culpa ou dolo da vítima”; no risco administrativo embora se dispense a prova da culpa da Administração, permite-se que o Poder Público demonstre a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização.

Mostra, logo após, que a teoria do risco administrativo, embora dispense a prova da culpa da Administração, permite que o Poder Público demonstre a culpa da vítima, para excluir e atenuar a indenização, o que não aconteceria no caso de risco integral, modalidade extremada do risco administrativo, e segundo o qual a Administração fica obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima. Ora, como observam Mário Marzagão e Otávio de Bastos (Responsabilidade pública, 1956), essa teoria jamais foi acolhida em toda a sua intensidade.

A teoria do risco administrativo foi adotada pela doutrina, sendo reconhecida como a que mais se mostra adequada à compreensão da responsabilidade civil do Estado, acrescentando-se que, na legislação brasileira, a Administração Pública pode ser responsabilizada na forma do risco integral apenas quando praticar dano ambiental, na forma do artigo 14 da Lei 6.938/81, e artigo 225, § 3º, da Constituição Federal, ou dano nuclear, nos termos do artigo 21, XIII, alínea “ d”, da Constituição Federal.

Aliás, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estava em consonância com a doutrina majoritária, entendendo que a teoria adotada por nosso ordenamento jurídico, como regra, foi a do risco administrativo, a qual, conforme já dito, admite que o Estado demonstre, em sua defesa, a presença de causa excludente da responsabilidade ( AgR no AI 577.908/GO, AgR no Ai 636.814/DF).

Diante da gravidade do mal que atualmente assola o mundo, poderão, portanto, ser tomadas medidas diversas sempre no sentido de responsabilizar os órgãos públicos que, por ação ou omissão, contribuam para a proliferação de tamanho mal à saúde pública.

Caio Tácito (RDA 55/262) entende cabível a responsabilidade objetiva nos casos de dano anormal, decorrente de atividade lícita do Poder Público, mas lesiva ao particular.

Em posição oposta estão Aguiar Dias (RDA 15/65), Mário Mazagão (Curso de direito administrativo, 6ª edição, RT, 1977, pág. 203) e ainda Hely Lopes Meirelles (Direito administrativo brasileiro, 32ª edição, São Paulo, pág. 2006), todos considerando que desde o texto de 1988, a responsabilidade objetiva é a regra.

Mas não se desconhece que há campo vasto para a responsabilidade subjetiva no caso de atos omissivos, determinando a responsabilidade pela teoria da culpa ou falta de serviço, seja porque o serviço não funcionou, quando deveria funcionar normalmente, seja porque funcionou mal ou funcionou tardiamente.

A tese de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (Princípios gerais de direito administrativo, volume II, pág. 487) é a que melhor se amolda aos termos da Constituição de 1988, que nesse ponto seguiu as anteriores.

Disse ele:

“ A responsabilidade fundada na teoria do risco-proveito pressupõe sempre ação positiva do Estado, que coloca terceiro em risco, pertinente à sua pessoa ou ao seu patrimônio, de ordem material, econômica ou social, em benefício da instituição governamental ou da coletividade em geral, que o atinge individualmente, e atenta contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, em lhe atribuindo danos anormais, acima dos comuns, inerentes à vida em Sociedade.

“ Consiste em ato comissivo, positivo, do agente público, em nome do e por conta do Estado, que redunda em prejuízo a terceiro, consequência de risco decorrente da sua ação, repita-se, praticado tendo em vista proveito da instituição governamental ou da coletividade em geral. Jamais de omissão negativa. Esta, em causando dano a terceiro, não se inclui na teoria do risco-proveito. A responsabilidade do Estado por omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização e funcionamento do serviço, que não funcionou ou funcionou mal ou do atraso, e atinge os usuários do serviço ou os nele interessados.”

Sérgio Cavalieri Filho (Programa de responsabilidade civil, 9ª edição, São Paulo, Atlas, pág. 270), conclui que a responsabilidade subjetiva do Estado não foi de todo banida de nossa ordem jurídica. A regra é a responsabilidade civil, fundada na teoria do risco administrativo, sempre que o dano for causado por agentes do Estado, nessa qualidade; sempre que houver uma relação de causa e efeito entre a atuação administrativa (comissiva ou por omissão específica) e o dano. Há omissão específica, como diz Guilherme Couto de Castro (A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro, 1977, pág. 37), quando o Estado por omissão sua, crie a situação propícia para a ocorrência do evento em situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo. Como bem disse Sérgio Cavalieri Filho, resta, todavia, espaço para a responsabilidade subjetiva (por omissão genérica), nos fatos e fenômenos da natureza, determinando-se a responsabilidade da Administração, com base na culpa anônima ou falta de serviço, seja porque este não funcionou, quando deveria normalmente funcionar, seja porque funcionou mal ou funcionou tardiamente.

Lembre-se a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo, 19ª edição, nº 54) quando diz que, “nestas hipóteses, o Estado incorre em ilicitude “ por não ter acorrido para impedir o dano ou por haver sido insuficiente neste mister, em razão de comportamento inferior ao padrão legal exigível”

Sabe-se que os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade objetiva do Estado compreendem: a) a alteridade do dano; b) a causalidade material entre o evento damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público; c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independente de licitude ou não do comportamento funcional ( RE 109.615 – 2, Relator Ministro Celso de Mello, DJU de 2 de agosto de 1996); d) ausência de causa excludente da responsabilidade funcional estatal (RTJ 55/503; RTJ 71/99; RTJ 991/3.777).

Aplica-se, para o caso, a responsabilidade civil objetiva do Estado de modo a responder aos danos que vierem a ser causados à população pela ação imprópria de seus agentes.

*É procurador da república aposentado com atuação no RN.

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