Ao perceber que a sua aceitação no Congresso estava cada vez menor, o presidente Jair Bolsonaro se viu obrigado a abandonar o discurso de que não transige com a corrupção e abriu o governo federal para legendas do Centrão, grupo notório por reunir partidos considerados fisiológicos e contra alguns dos seus integrantes pesam processos judiciais e condenações por malversação de recursos públicos. A manobra é a mesma que outros presidentes executaram: obtenção de apoio entre os parlamentares para manter a governabilidade e, sobretudo, adquirir musculatura para debelar uma eventual abertura de processo de impeachment. Dentro do Executivo, subordinados também começaram a comprar a ideia. Independentemente da resposta popular, os aliados do presidente querem garantir que Bolsonaro cumpra os quatro anos de mandato.
No que depender dos integrantes do governo, inclusive dos militares, Bolsonaro terá respaldo para qualquer tipo de articulação política. O vice-presidente Hamilton Mourão, por exemplo, reconhece que a crise sanitária “obrigou o presidente a buscar uma nova forma de diálogo com o Congresso”. Segundo ele, no início, o foco do governo era se aproximar de bancadas temáticas –– como a evangélica e a da bala –– para constituir maiorias provisórias no Parlamento, mas a pandemia fez com que o presidente passasse a lidar de maneira diferente com as legendas, para tentar “extrair o melhor” de cada uma.
“Efetivamente, como outros presidentes tiveram que fazer, (Bolsonaro buscou) uma aproximação mais cerrada junto aos partidos políticos, de modo que ele construa uma base que lhe dê certa estabilidade para tentar aprovar aquilo que nós julgamos necessário”, disse o general, durante videoconferência promovida pela consultoria Arko Advice.
Esse pensamento é compartilhado pelos três ministros militares com assento no Planalto: Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Walter Braga Netto (Casa Civil) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também “culpa” o surto do novo coronavírus como o principal motivo de Bolsonaro ter se submetido à velha política que tanto condenava. Na avaliação dele, o presidente não está errado em negociar cargos no governo em troca de apoio no Congresso.
“Infelizmente, essa pandemia atacou a economia em todos os países, e o Brasil foi um deles. Apesar de antes estar em uma subida muito consistente na retomada econômica, o país terá as consequências da pandemia. E tem reflexos em todas as áreas, inclusive na necessidade de um maior cuidado com a relação política entre os diversos entes”, analisou Salles, em recente entrevista à CNN Brasil. “Toda mudança tem um período de adaptação. Tem, evidentemente, pontos que precisam ser sempre aprimorados. E o governo vem fazendo a sua parte nesse sentido”, acrescentou.
Porteira aberta
No fim de abril, Bolsonaro declarou não ver problemas em abrir vagas no governo para o Centrão, mesmo que isso signifique abandonar o discurso adotado na campanha eleitoral de 2018. E se deu conta de que o toma lá dá cá tem tudo para ser um importante pilar do governo
“Eu converso praticamente com todos os parlamentares. Quando falo com o pessoal do PP… Eu já fui mais de 10 anos do partido. Por que eu não vou conversar com nomes do PP, já que foram meus colegas por 15 anos? Qual o problema? Eles que votam. Se eles têm algum pecado, o eleitor do estado é que deve tomar providência. Eu não estou aqui para julgar, condenar, acusar, pedir cassação de qualquer parlamentar”, explicou-se.
Na semana passada, o Centrão seguiu com firmeza as diretrizes do governo na votação do projeto de socorro aos estados e municípios. Na Câmara, principalmente, a orientação das lideranças centristas fez com que a proposta fosse aprovada conforme os interesses do Palácio do Planalto, com um placar de 437 votos favoráveis e 34 contrários. Para o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a negociação de Bolsonaro mostra que, de fato, a base do governo pode começar a crescer.
“No parlamento é natural que haja base (do governo), oposição e independentes. Não muda nada na minha relação com o governo, com nenhum partido. Continua a mesma. Só que, agora, de fato uma parte, de forma objetiva, pode ser parte de uma base do governo. Vamos ver. Na relação com a presidência da Câmara, nenhum partido vai ter problema porque apoia ou critica o governo. Aqui é a casa da democracia”, analisou, em coletiva de imprensa.
O deputado disse que “é um direito democrático um partido querer defender as pautas do governo”. “É legítimo que o governo tenha o direito de organizar sua base. Se é com o PP ou com outros partidos, é um direto do governo montá-la de forma transparente para que a sociedade tenha as informações sobre como é a relação do governo com o Parlamento”, salientou.
Insinceridade
Mas há quem duvide da conduta de Bolsonaro, em especial antigos apoiadores e hoje desafetos dele. O deputado Julian Lemos (PSL-PB) reclamou que o presidente “transformou o Centrão em aliados e, aliados, em inimigos”. “(Bolsonaro) conseguiu implodir a base que o fez chegar ao poder. Agora, temos uma aliança pelo Brasil e ela já tem seu fundo eleitoral: Banco do Nordeste, Funasa (Fundação Nacional de Saúde), entre outros. Nesse momento, o governo perde sua essência. O Centrão mostrou as vísceras de um governo que se autodesmoralizou”, reclama o parlamentar, ao citar alguns dos órgãos cujos cargos estão em negociação com Planalto.
Vice-presidente nacional do PSL, o deputado Júnior Bozzella (SP) lamentou que Bolsonaro tenha se entregado ao Centrão. “Este é o último estágio de desespero”, acusa o parlamentar, que acrescenta: o presidente está “acuado”. “Os critérios republicanos foram todos enterrados no ‘novo’ governo do toma lá dá cá. A origem de Jair Bolsonaro é o baixo clero do Centrão. Você tira o Bolsonaro do Centrão, mas não tira a velha prática do Centrão de Bolsonaro”, destacou.
Crises levaram aos cargos
A necessidade política colocou na mesa vagas em ministérios e em órgãos de segundo e terceiro escalão. A primeira autarquia a ser ocupada pelo Centrão foi o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). Na última quarta-feira, Fernando Marcondes de Araújo Leão foi escolhido como o novo diretor-geral. O acordo para a sua nomeação foi costurado entre Lira e o deputado Sebastião Oliveira (PL-PE), que, na sexta-feira, foi alvo de uma operação da Polícia Federal que investiga desvio de recursos em obras na BR-101, em Pernambuco. Mas nada disso impediu o PP de emplacar mais um nome: Tiago Pontes Queiroz na Secretaria de Mobilidade do Ministério do Desenvolvimento Regional. É mais um com litígios na Justiça: é acusado por improbidade administrativa em uma ação em que também tem como réu o ex-ministro da Saúde, e hoje vice-líder do governo no Congresso, deputado Ricardo Barros (PP-PR).
A Secretaria de Vigilância em Saúde é outro posto no rol de negociações. No momento, segue ocupada por Wanderson de Oliveira –– um dos escudeiros de Luiz Henrique Mandetta quando era comandante do Ministério da Saúde. Pelas conversas de Bolsonaro, a pasta está prometida ao PL, que ainda pode abocanhar o Banco do Nordeste.
O presidente articulou com o Centrão a entrega da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) ao PSD. Já o Republicanos está à espera da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e de uma secretaria no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento ao Republicanos. O bloco ainda se prepara para ocupar o Fundo Nacional de Desenvolvimento para Educação (FNDE) e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
Morismo, a ameaça
A estridente saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, dias atrás, acendeu a luz de alerta na fiel base bolsonarista no Congresso. Como, a certa altura, o discurso presidencial se confundiu com a atuação do ex-juiz da Operação Lava Jato, houve quem percebesse que estariam dadas as condições para o surgimento de um grupo “morista”, egresso das hostes de apoio ao presidente, que o enfraqueceria mais no Legislativo. Assim, a aproximação com o Centrão também se justifica.
“Essa base, em tese, de combate à corrupção, vai começar a surgir e deve ser forte o suficiente para enfrentar o Centrão. Bolsonaro já viu acender o sinal amarelo de que é preciso tentar reconstruir o governo”, comenta o cientista político Enrico Ribeiro, coordenador legislativo da Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais.
O vice-líder do governo no Congresso, deputado Celso Russomanno (Republicanos-SP), acha natural a aproximação do Centrão com Bolsonaro. “Qual é o quadro que temos hoje? Os cargos de terceiro e quarto escalões são todos da administração anterior. Não foi trocado nenhum. Tem vários órgãos do governo que foram indicados pela Dilma (Rousseff), pelo (Michel) Temer, pelo Lula. Ele precisa resolver esse problema”, defende o deputado. “Quantas pessoas o Bolsonaro conhece para indicar na administração federal? Não vai conseguir escolher todos. Por isso, precisa de apoio político. Caso contrário, indicará pessoas sem competência”, acrescenta.
Já o vice-líder do governo no Senado, Chico Rodrigues (DEM-RR) defende as articulações de Bolsonaro com o Centrão e diz que a oferta de cargos pode ser feita “desde que não haja a prática que existiu nos governos anteriores, nos quais alguns dos agentes públicos eram mal intencionados, e só deu errado”.
O senador pondera que o presidente tem que avaliar muito bem as decisões que vier a tomar para “fortalecer a democracia e não deixar a população em uma encruzilhada de dúvidas”. Ele espera que “haja unidade no essencial, mas tudo em benefício da organização do país”.
Correio Braziliense*