No distrito de Pajuçara, em São Gonçalo do Amarante (RN), o cenário econômico gira em torno de duas atividades centrais: a pesca artesanal e a filetagem de camarão. Essas práticas são responsáveis por movimentar a economia local e garantir o sustento de diversas famílias da região. No entanto, há um problema silencioso que acompanha esse desenvolvimento: toneladas de resíduos resultantes do processamento do camarão, como cabeças, patas e carapaças, acabam sendo descartadas de forma inadequada, gerando impactos ambientais preocupantes. Foi para enfrentar esse desafio que nasceu, dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), uma proposta inovadora.
O projeto de extensão e pesquisa “Utilização Sustentável de Resíduos da Filetagem de Camarão”, coordenado pela professora Cibele Soares Pontes, da Escola Agrícola de Jundiaí (EAJ-UFRN), propõe transformar resíduos em uma oportunidade concreta de geração de renda e preservação ambiental para a comunidade de Pajuçara. Além da professora Cibele Pontes, Fabiana Borges de Oliveira, licenciada em Ciências Biológicas e mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo PRODEMA, também participou das atividades de pesquisa e das oficinas com a comunidade.
O problema ambiental que virou oportunidade
O Rio Grande do Norte ocupa hoje o segundo lugar no ranking nacional de produção de camarão, atrás apenas do Ceará, e a carcinicultura, criação de camarões em cativeiro, se consolidou como uma das principais atividades econômicas do estado. No entanto, o crescimento acelerado e desordenado do setor trouxe efeitos colaterais importantes, principalmente no que diz respeito ao meio ambiente. Um diagnóstico socioambiental realizado em 2017, na comunidade de Pajuçara, revelou um dado alarmante: cerca de 90% dos impactos cumulativos sobre o estuário do rio Potengi estavam relacionados ao descarte inadequado dos resíduos da filetagem do camarão. Esse despejo contribuía para a degradação ambiental, afetando diretamente a qualidade da água e comprometendo a biodiversidade local.
O desafio inicial, segundo a equipe do projeto, foi encontrar uma liderança comunitária reconhecida localmente para facilitar o diálogo. A partir desse contato, foi possível aplicar questionários e realizar rodas de conversa, que revelaram não apenas os danos causados ao meio ambiente, mas também a receptividade da comunidade frente à possibilidade de reutilizar os resíduos. “As mulheres que trabalhavam com a filetagem de camarão demonstraram interesse em aprender sobre como aproveitar o que, até então, parecia ser apenas lixo”, destaca a professora Cibele.
Do resíduo ao biscoito
Um dos grandes marcos do projeto foi o desenvolvimento de um produto alimentar inédito: um biscoito salgado com sabor de camarão, produzido a partir da farinha feita com as cabeças do camarão cinza. A receita foi desenvolvida com apoio do professor Tarcísio Gonçalves, da área de Gastronomia da EAJ-UFRN. Tanto a farinha quanto o biscoito passaram por testes microbiológicos em laboratório de referência, além da aprovação pelo Comitê de Ética da UFRN, antes de serem submetidos à análise sensorial com provadores não treinados, excetuando-se pessoas alérgicas ou que nunca haviam consumido camarão. Foram aplicados testes como o Duo-Trio e a escala hedônica para avaliar atributos como cor, sabor e textura, além da intenção de compra, demonstrando o potencial comercial do produto.
Apesar das limitações, a proposta continua viva por meio de desdobramentos na graduação e pós-graduação, especialmente no PRODEMA/UFRN, e agora sob o guarda-chuva da RedeMaris — Rede de Pesquisa e Extensão em Mariscagem. Composta por 67 participantes de 31 instituições brasileiras e uma canadense, a RedeMaris é coordenada por Gustavo Henrique Gonzaga da Silva, docente da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa). Visa integrar pesquisadores, extensionistas, comunidades tradicionais e órgãos públicos para fortalecer a cadeia produtiva dos mariscos no Nordeste, com foco na equidade de gênero, empoderamento das mulheres pescadoras, educação ambiental e valorização de saberes locais.
“O primeiro passo já foi dado, com a formação da RedeMaris. O grande desafio é a limitação de verba nas Instituições de Ensino Superior”, pontua Cibele. Entre as ações da Rede, estão o diagnóstico da mariscagem, o mapeamento das áreas de extração, a avaliação da saúde ocupacional das marisqueiras e o desenvolvimento de tecnologias que agreguem valor aos produtos da pesca.
Alinhamento com os ODS
A iniciativa está alinhada com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 12, que visa garantir padrões sustentáveis de produção e consumo. Em um cenário global em que cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são desperdiçadas diariamente, soluções como essa ganham ainda mais relevância. Para a professora Cibele Soares Pontes, pensar a carcinicultura com um olhar inovador é fundamental. “Nosso objetivo é oferecer alternativas viáveis, que respeitem o meio ambiente e gerem impacto positivo na vida das pessoas envolvidas com essa cadeia produtiva”, reforça.
Além do ODS 12, o projeto também toca nos ODS 1 e 11, ao buscar promover geração de renda e melhorar a qualidade de vida nas comunidades. Entretanto, a transformação da proposta em realidade comercial ainda esbarra em dificuldades concretas. “Ajudaria se a comunidade conseguisse produzir a farinha e desenvolver os biscoitos, mas a secagem das cabeças é um processo demorado, que necessita a obtenção de forno elétrico, o que eles não possuem. A questão da geração de energia solar também seria muito interessante”, explica a professora. Nesse ponto, o fortalecimento de parcerias tem se mostrado essencial. A equipe já articula colaborações com a Associação Quilombola de Arez (comunidade Camucim) e a Colônia de Pescadores Z13, no município de Georgino Avelino, buscando ampliar o alcance da iniciativa.
Para a coordenadora Cibele Pontes, o papel da universidade pública é central. “A universidade pública, em seu papel social, ocupa um local primordial a partir da realização de pesquisas que visem o aproveitamento de resíduos gerados por atividades pesqueiras, retornando para a população e agentes públicos possíveis soluções que possam melhorar a sustentabilidade da atividade.” Mais do que encontrar respostas técnicas, trata-se de promover o protagonismo comunitário. “Queremos que os moradores de Pajuçara sejam agentes dessa mudança, capazes de transformar desafios ambientais em oportunidades concretas de melhoria de vida”, conclui.